23 setembro 2015

ÚLTIMOS DESEJOS



Pessoas Que Realizam Últimos Desejos

por Vibeke Venema
Texto original publicado, em inglês, no site da BBC


 Foto de Roel Foppen/ Stichting Ambulance Wens
 
No início desse ano, foi publicada a fotografia de uma mulher numa maca, no Rijksmuseum, em Amsterdã. Ela estava lá para ver, uma última vez, o seu quadro favorito de Rembrandt. Sua visita foi possibilitada por um grupo de caridade holandês que ajuda pacientes terminais a realizar seus últimos desejos.
“Aprendi que pessoas prestes a morrer têm pequenos desejos," disse Kees Veldboer, o motorista de ambulância que fundou o Stichting Ambulance Wens – ou Fundação de Desejo Ambulante – após o impulso de ajudar um paciente.
Em novembro de 2006, ele estava transportando o paciente terminal Mario Stefanutto, de um hospital para outro. Mas logo após colocá-lo na maca, foi informado que haveria um atraso – o hospital de destino não estava pronto. Stefanutto não queria voltar para a cama em que tinha passado os últimos três meses, então Veldboer perguntou se havia algum lugar que ele gostaria de ir.
O marinheiro aposentado pediu se poderia ser levado ao canal de Vlaardingen, para ele ficar à beira d'água e dizer um último adeus ao porto de Roterdã. Era um dia ensolarado e eles ficaram no cais por quase uma hora. “Lágrimas de alegria percorreram seu rosto,” disse Veldboer. “Quando perguntei a ele: ‘Você gostaria de ter a oportunidade de velejar novamente?’ ele disse que seria impossível porque ele estava numa maca.”

Kees Veldboer e sua colega Linda levam Mario Stefanutto para ver o porto.

Veldboer estava determinado a realizar o último desejo desse homem. Ele pediu ao chefe se poderia pegar a ambulância emprestada no dia de folga, recrutou a ajuda de um colega e entrou em contato com uma empresa que faz tours de barco ao redor do porto de Roterdã – todos ficaram muito felizes em ajudar e, na sexta-feira seguinte, para a surpresa de Stefanutto, o motorista da ambulância apareceu no seu leito de hospital para levá-lo velejar.
Numa carta escrita semanas antes de sua morte, Stefanutto diz, “Fico feliz que ainda há pessoas que se importam com os outros... Posso falar, por experiência própria, que um pequeno gesto de outra pessoa pode ter um impacto imenso."

O primeiro desejo se realiza - Mario Stefanutto num tour pelo porto de Roterdã.

Essa foi a origem do Stichting Ambulance Wens. Veldboer e sua esposa Ineke, uma enfermeira, começaram na mesa da cozinha - oito anos depois, eles têm 230 voluntários, seis ambulâncias, um abrigo de férias e estão quase alcançando 7.000 desejos realizados. Ás vezes, os desejos são realizados no dia em que são feitos. Em média, o grupo ajuda quatro pessoas por dia – eles podem ter qualquer idade, a única condição é que os pacientes sejam terminais e que não possam ser transportados fora de uma maca.
“Nossa paciente mais nova tinha 10 meses, uma gêmea. Ela estava num centro infantil e nunca havia ido para casa - seus pais gostariam de sentar no sofá com ela uma única vez.
“E nossa paciente mais velha tinha 101 anos – ela queria andar a cavalo uma última vez. Nós a erguemos até o cavalo, com a ajuda de um caminhão, e depois a colocamos numa carruagem puxada por cavalos - ela acenava para todos como se fosse uma rainha. Aquele foi um bom desejo,” disse Veldboer.

A senhora de 101 anos que tinha o desejo de cavalgar uma última vez.

Embora outros grupos de caridade ofereçam um dia de passeio a pacientes terminais, a Stichting Ambulance Wens foi a primeira a fornecer ambulância e reforço médico integral. Sempre há uma enfermeira capacitada acompanhando e os experientes motoristas quase sempre são ex-policiais ou ex-bombeiros. As ambulâncias personalizadas possuem vista e todos os pacientes recebem um ursinho de pelúcia chamado Mario, em homenagem a Stefanutto.

Ineke e Kees Veldboer ajudaram milhares de pessoas a realizar seu últimos desejos.

“Nós, voluntários, ficamos muito satisfeitos em ver as pessoas se divertindo,” disse Roel Foppen, um ex-soldado que é um dos motoristas. Nos últimos seis anos, ele ajudou a realizar 300 desejos.
Uma vez ele foi até a România, uma viagem de 4.500 km. Foi para uma mulher chamada Nadja, que viveu na Holanda por 12 anos. Seus filhos, de três e sete anos, já estavam na România com a família dela e ela queria morrer lá.
“Ela estava tão doente que não podíamos nem tocar nela,“ disse Foppen. Eles saíram na manhã de uma quinta-feira, mas no decorrer da viagem pela Alemanha, a condição de Nadja piorou, então eles pararam no hospital. Os médicos recomendaram que Nadja ficasse lá, mas ela queria ver os filhos – e o desejo dela era o que contava. Depois de uma parada de três horas, eles continuaram pela Áustria e Hungria – quando chegaram na fronteira com a România, Nadja disse, “Tirem a maca, agora posso morrer!”
Foppen disse, “Faltam apenas 600 km até sua mãe e seus filhos – você não aguenta só mais um pouquinho?" No sábado, a ambulância chegou na cidade de Bucarest para um encontro emocionante. A equipe voltou, deixando Nadja. A família dela enviou um cartão dizendo que ela morreu duas semanas depois.

Nadja queria voltar para a România para morrer ao lado de sua família. 

“Se as pessoas sabem que estamos chegando, elas encontram novas reservas de energia," disse Foppen. "Com frequência, a família nos diz que estava prestes a cancelar porque o paciente estava muito mal, mas quando chegamos eles ficam radiantes, prontos para o dia.”
Foi Foppen quem tirou a famosa fotografia no Rijksmuseum. Ele estava do outro lado da galeria com sua colega Mariet Knot, realizando o desejo de outra pessoa. Eles estavam cuidando de um homem chamado Donald, que visitava o museu com frequência, com seu parceiro de 30 anos - os dois homens haviam se casado na semana anterior. “Foi bom que ele estava no comando," disse Knot. “Ele nos disse quais quadros queria ver e nos contou muito sobre eles, para que nós também aproveitássemos."
O último trabalho da exposição era um que Donald nunca havia visto - Simão com o Menino Deus no Templo, um quadro que ficou incompleto, na época da morte de Rembrandt. Donald se emocionou muito. “Percebo agora que a vida nunca está completa. Minha vida não está completa, e esse quadro não foi terminado,” ele disse.
Então, após uma pausa, “Já vi o que queria ver, podemos ir agora.”

Simão com o Menino Deus no Templo, de Rembrandt, 1669 (óleo sobre tela) não foi terminado.

Knot, que trabalha como enfermeira comunitária, disse que é uma honra poder compartilhar esses momentos. Ela conheceu o grupo de caridade quando foi convidada por um paciente de câncer de quem havia ficado amiga. O desejo dele era ver o Maasvlakte 2, uma grande extensão nova do porto de Roterdã, que está sendo construída em terras recuperadas. Antes dele ficar muito mal, verificávamos o andamento da construção a cada semana – dessa vez fizemos o tour completo com ele. A experiência deixou Knot muito entusiasmada e ela escreveu a Veldboer para oferecer seus serviços.
“Toda vez é especial. Você conversa com seus colegas no caminho de casa e é sempre especial, não importa se foi algo pequeno,” disse Knot. “Houve uma senhora que queria apenas um copo de advocaat (um licor cremoso de ovo) em casa. Então o filho dela comprou uma garrafa, fomos até a casa dela, ela deu uma colherada no advocaat e voltamos. Esse era o desejo dela.”
“As pessoas perguntam, ‘Não é exaustivo? Não é muito emotivo, sempre lidar com últimos pedidos?’ É sim, mas geralmente as pessoas estão prontas para morrer, porque estão tão perto disso, que é bom promover algo que elas realmente querem," ela disse.
Frans Lepelaar é um ex-policial que dirige para o grupo. Após 20 anos atrás de uma mesa, investigando fraudes, ele queria retribuir ajudando os outros pessoalmente. “Ás vezes é difícil, mas como policial também tive que lidar com assassinatos, então eu sei como separar as coisas," ele disse.
“Pode ser um dia longo – você pode voltar no meio da noite. Sempre perguntamos, ‘Você quer mais alguma coisa?' Eles sempre agradecem. Esse é o objetivo," ele disse.
Muitos dos desejos envolvem ir para casa, dizer adeus aos colegas ou ir em casamentos e velórios. Muitos desejam ver o mar, “porque faz parte da paisagem holandesa” disse Lepelaar, que fazia patrulha na praia. Passeios ao zoológico também são muito populares e representam cerca de 15% dos desejos.
Foi um desses passeios que virou manchete em 2014. Lepelaar e seu colega, Olaf Exoo, levaram Mario, um homem de 54 anos com dificuldades de aprendizado, para dizer um adeus final aos seus colegas no Zoológico Diergaarde, em Roterdã, onde trabalhou por 25 anos. No fim do seu expediente, como funcionário de manutenção, ele costumava sempre visitar os animais, e ele fez essa ronda uma última vez.
Quando chegaram na grade da girafa, foram convidados a entrar, e uma das girafas mais curiosas se aproximou e deu uma lambida no rosto de Mario. Ele estava muito mal para falar, mas seu rosto se iluminou, disse Exoo, que tirou a fotografia do "beijo da girafa", que fez manchete.

Mario recebe uma lambida e uma cheirada da girafa.

Exoo disse que gosta mais dos pequenos desejos. “Aquelas coisas que não valorizamos, mas que se tornaram impossíveis para essas pessoas.” Conforme sua própria carreira de enfermeiro progride, Exoo passa cada vez mais tempo atrás de uma mesa, então voluntariar é uma forma de retomar o que ele mais ama - cuidar de pacientes. “Não há limite de tempo, então posso mimar as pessoas o dia todo,” ele disse.
"É intenso, mas por isso é interessante,” disse Mirjam Lok, uma enfermeira de 25 anos. “Você não sabe quem vai conhecer quando abre a porta e, no fim do dia, você realizou o seu último desejo, você fecha a porta e pensa - isso foi bom.
“Aprendi que você pode encontrar a felicidade nas pequenas coisas e esse deve ser o objetivo - em vez de desejar o que você não tem."
Lok mora no norte do país e gostaria de trabalhar na região, mas parece que poucas pessoas nas províncias do Norte – Groningen e Friesland – possuem últimos desejos. “Eles são impassíveis,” disse Lok. “As pessoas não pedem por muito, ficam facilmente satisfeitas – elas dizem, ‘Não sei qual poderia ser meu último desejo.’”
Veldboer confirma que menos pessoas da região norte usam o serviço, e o mesmo se aplica à província do Sul de Zeeland. Ele acha que é uma questão de caráter regional, mas Knot acredita que se trata mais de a equipe médica encorajar os pacientes a aceitar a oferta.
No início, os médicos vetavam os passeios da fundação, disse Veldboer, mas conforme o trabalho ficou mais conhecido, isso raramente acontece. Agora é quase sempre o hospital ou centro que faz a primeira solicitação.
“Houve uma senhora que queria ir no casamento do seu neto. O centro negou, mas ela estava desesperada e, por fim, eles nos ligaram. Levamos ela e ela amou,” disse Veldboer. “No caminho para casa ela olhou para nós e disse, ‘Vocês não entendem como isso foi importante para mim.’” Ela morreu naquela noite.
Considerando a proximidade desses pacientes com a morte, é talvez surpreendente que, de quase 7.000 pessoas, apenas seis morreram durante o seu "pedido". Nesses casos, o papel da equipe da ambulância é apoiar a família e providenciar os arranjos necessários para o corpo. Veldboer disse que, em todos os seis casos, as famílias agradeceram pela ajuda.

Alguns dos voluntários no Rijksmuseum.

“Acho que evoluímos muito nos tratamentos paliativos e cuidados terminais,” disse Knot. “Garantimos que a pessoa não sinta dor. Eles pararam de receber tratamento e morrerão logo... se puderem ter um dia agradável de passeio, mesmo que estejam cansados no dia seguinte, isso não é bom? Todo mundo gosta de proporcionar isso.”
"Na Holanda, discussões sobre morte estão cada vez mais abertas," disse Knot. Como parte do seu trabalho de enfermeira comunitária, ela pergunta com frequência sobre arranjos finais, sedação e eutanásia – geralmente, os pacientes já falaram sobre isso com seus médicos.
“Acho que houve uma mudança cultural - para pessoas mais velhas, especialmente se tiveram uma criação religiosa, isso ainda é varrido para baixo do tapete, mas para os mais jovens com famílias, isso é discutido abertamente,” ela disse.
Knot acredita que o que a fundação faz é muito do processo de luto e é bom envolver os pacientes enquanto eles ainda podem – “para que não se espere até depois da morte deles".
Como exemplo, ela cita um homem que desejava voltar à empresa da família. “Toda a família veio ao depósito para dizer adeus a esse homem numa maca. Ele queria ver todas as máquinas, rever todos os cantos escuros onde ele havia feito consertos.” Enquanto a maca era conduzida pelo depósito, o resto da família seguia, num tipo de procissão. “Era cansativo para ele falar, porque ele usava língua de sinais - ele e seus três irmãos eram surdos, assim como duas de suas esposas," disse Knot. “Até que o meu motorista começou a falar com as mãos.” O motorista da ambulância, que era novo na fundação, sabia língua de sinais. “Foi extraordinário, a família disse que ficou arrepiada. Então você pensa – não existem coincidências.”
Seguindo o imenso sucesso desse empreendimento, Veldboer ajudou a estabelecer serviços de ambulância semelhantes no exterior, primeiro em Israel – após levar uma mulher judia para Jerusalém, onde ela queria morrer - e depois na Bélgica, Alemanha e Suécia.
Como um homem prático e sensato, ele admite que montar a fundação lhe deu confiança. “Costumava achar que não podia fazer muito, mas descobri que minhas ideias não são nada ruins. Aprendi que se você seguir o coração e fazer as coisas do seu jeito, as pessoas te apoiarão.
“Sou um cara holandês muito comum, que faz o que mais ama e meu hobby é ajudar os outros."


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